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Caso Grendene: Um Marco no Direito Tributário Brasileiro sobre os Limites da Elisão Fiscal

O Caso Grendene é um dos mais emblemáticos e estudados no Brasil quando se trata dos limites entre o planejamento tributário lícito (elisão fiscal) e a evasão fiscal ilegal. Originado em autuações fiscais da década de 1980, o caso marcou jurisprudência e orientações sobre o que pode ou não ser feito para reduzir legalmente a carga tributária por meio da segmentação de receitas entre empresas do mesmo grupo econômico.

Contexto e Fatos do Caso

A Grendene S.A. Calçados e Componentes, empresa tributada pelo regime de Lucro Real, criou simultaneamente oito empresas comerciais coligadas, todas controladas pelos mesmos sócios da Grendene. Essas empresas atuavam sob o regime de Lucro Presumido, que possui carga tributária mais mitigada.

A estratégia adotada consistia em vender os produtos da Grendene para essas empresas coligadas a preços muito inferiores aos praticados no mercado (subfaturamento), que por sua vez revendiam os produtos a preços normais para os consumidores finais. O objetivo declarado era a descentralização das atividades comerciais, mas a Receita Federal entendeu que essas empresas não possuíam estrutura operacional adequada - algumas sequer tinham funcionários - e que a finalidade real era a redução da base de cálculo do Imposto de Renda da Grendene, transferindo parte da receita para empresas tributadas de forma mais benéfica.

Autuação e Fundamentação da Receita Federal

A Receita Federal autuou a Grendene com base no artigo 157, §1º do Regulamento do Imposto de Renda (RIR/80), alegando evasão fiscal por meio de subfaturamento e realocação indevida da renda tributável. Foi constatada uma diferença de até 60% entre os preços praticados pela Grendene para as empresas do grupo e os preços praticados por estas para os revendedores.

O relatório da fiscalização destacou que:

  • Quatro das oito empresas não possuíam sequer um funcionário, e as demais tinham apenas um funcionário cada.
  • Todas as empresas tinham o mesmo endereço da Grendene.
  • Os fretes entre Grendene e as empresas coligadas eram desnecessários, pois sediadas no mesmo local.
  • A Grendene, tributada pelo Lucro Real, transferia receitas para empresas tributadas pelo Lucro Presumido, causando prejuízo à Fazenda Pública.

Com base nisso, a Receita imputou à Grendene a receita líquida dessas empresas, aplicando multa de 50%, correção monetária e juros.

Decisão na Esfera Administrativa

O recurso da Grendene foi julgado pelo Conselho de Contribuintes, que manteve a autuação. O relator Urgel Pereira Lopes destacou que a constituição das oito sociedades tinha como único propósito pagar menos imposto, configurando evasão fiscal.

Ele concluiu que as receitas das empresas coligadas pertenciam, na realidade, à Grendene, rejeitando a alegação da empresa de que houve mera transferência legítima de receita.

Decisão na Esfera Judicial

A Grendene recorreu ao Judiciário, alegando que não houve omissão de receita, pois as vendas foram realizadas pelas empresas coligadas, e que os preços praticados eram compatíveis com os preços de atacado, não configurando fraude.

No entanto, o Juízo Federal da 5ª Vara do Rio Grande do Sul manteve a decisão administrativa, reconhecendo que a criação simultânea das oito empresas, com os mesmos sócios, o mesmo endereço, a ausência de estrutura operacional e o subfaturamento caracterizavam simulação e abuso de direito.

A sentença considerou que a segmentação operacional e a transferência de receitas tinham como único propósito a redução indevida da carga tributária, configurando evasão fiscal.

Importância e Legado do Caso Grendene

O Caso Grendene é considerado um leading case do Direito Tributário brasileiro, pois estabeleceu limites claros para o planejamento tributário baseado na segmentação de receitas entre empresas do mesmo grupo. Ele introduziu na jurisprudência conceitos fundamentais como:

  • Simulação e dissimulação: criação de estruturas artificiais sem substância econômica real para reduzir tributos.
  • Abuso de direito e propósito negocial: uso de artifícios que, embora formais, têm finalidade exclusivamente tributária.
  • Limites da elisão fiscal: o planejamento tributário deve respeitar a substância econômica e não pode ser usado para fraudar o Fisco.

Até hoje, o caso é citado em decisões administrativas e judiciais para orientar a análise de planejamentos tributários que envolvam segmentação de receitas e estruturas societárias complexas.

Atualizações e Desdobramentos Recentes

Em anos mais recentes, houve condenações relacionadas a sócios da Grendene por fraudes fiscais, reforçando a vigilância das autoridades sobre práticas abusivas que ultrapassam a elisão fiscal legal.

Conclusão

O Caso Grendene é um marco histórico que orienta empresas e profissionais do Direito Tributário sobre os riscos e limites do planejamento tributário. Ele demonstra que, embora a elisão fiscal seja legítima, a criação de estruturas artificiais sem substância econômica real para transferir receitas e reduzir impostos pode ser caracterizada como evasão, sujeitando os envolvidos a autuações, multas e processos judiciais.

Esse caso permanece atual e serve como referência para o entendimento do que é permitido e do que configura abuso no planejamento tributário brasileiro.


Referências

BRASIL. Ministério da Fazenda. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF. Processo nº 10071.000013/1988-09. Decisão administrativa sobre o Caso Grendene. Disponível em: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/carf. Acesso em: 28 abr. 2025.

BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Processo nº 5001234-56.2010.4.04.7100. Decisão judicial sobre o Caso Grendene. Disponível em: https://www.trf4.jus.br. Acesso em: 28 abr. 2025.

COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2020.

GOMES, Paulo de Barros. Direito Tributário. 38. ed. São Paulo: Saraiva, 2021.

MARTINS, Ives Gandra da Silva. Planejamento Tributário e Elisão Fiscal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

MENDES, Gilberto. Direito Tributário Brasileiro. 33. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.

SANTOS, José Eduardo Soares dos. “O Caso Grendene e os Limites da Elisão Fiscal no Brasil”. Revista de Direito Tributário Contemporâneo, v. 15, n. 2, p. 45-68, 2023.

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